Nos finais de semana dos anos 20 e 30, uma pequena multidão de curiosos estancava na frente do número 83 da avenida Paulista. Formavam um grupo heterogêneo: eram pais de família com os filhos, turistas de outras cidades brasileiras e até visitantes estrangeiros, sobretudo italianos. O que os unia era o desejo de ver e cumprimentar seu morador, o conde Francesco Matarazzo, o homem mais rico do País em todos os tempos. Naquele endereço, em um terreno de 12 mil metros quadrados, erguia-se a Villa Matarazzo, um imponente palacete cujas linhas retas remetiam a uma imagem de solidez e austeridade. De 1898, quando foi construída, até 1996, ano em que os guindastes a colocaram definitivamente abaixo, a mansão foi símbolo da ascenção, apogeu e queda do maior império industrial da história do capitalismo brasileiro. O ponto final definitivo nessa trajetória foi colocado na semana passada, quando um consórcio formado pela Cyrela e pela Camargo Corrêa Desenvolvimento Imobiliário arrematou o terreno por R$ 125 milhões. A venda também é o epílogo de uma longa sucessão de brigas familiares que impediram a concretização do negócio durante anos. "Poderíamos ter vendido a propriedade há cerca de 15 anos, mas não fizemos por divergências familiares", José Eduardo Matarazzo Khalil, bisneto do conde Francesco. "Cada herdeiro tinha um interesse, tentei conciliar o que era melhor para todos."
As negociações duraram um ano e meio. A demora ocorreu, principalmente, devido às diferenças entre herdeiros da família sobre valores e compradores. Diversas propostas foram apresentadas por diversos membros da família. Três ofertas chegaram à reta final. A disputa estava entre a Lindencorp, o Banco Português de Negócios e o consórcio formado por Camargo Corrêa e Cyrela. Esta última levou a melhor. "Estamos falando da maior construtora e da maior incorporadora do mercado", diz José Eduardo. Foi ele que encaminhou o lance vencedor e conduziu as negociações. Mas o negócio, de fato, foi concluído apenas na segunda-feira, 15 de janeiro, pela manhã. Foi quando a família se reuniu para assinar o contrato de R$ 125 milhões. Eles receberam R$ 45 milhões em dinheiro e o restante em uma permuta de 12 mil metros quadrados da área construída no futuro prédio comercial que será erguido no local. Tudo isso será dividido em cinco partes entre os herdeiros de Francisco Matarazzo Junior, filho do conde Francesco: Maria Pia Matarazzo, Filomena Matarazzo, conhecida como Filly, Francisco Matarazzo III, Helene Matarazzo, viúva de Ermelino, e Eneida Matarazzo, viúva de Eduardo Matarazzo. A mãe de José Eduardo, Maria Pia, contudo, não verá a cor do dinheiro. O montante foi bloqueado pela Justiça para o pagamento das dívidas do grupo Matarazzo. "O melhor desse negócio foi resolver as diferenças e até voltar a falar com algumas pessoas da família", revela José Eduardo.
O desfecho dessa novela também revela muito da história recente do País. "O palacete de um industrial simbolizou uma época em que o Brasil privilegiava a produção", afirma Andrea Matarazzo, secretário das subprefeituras da cidade de São Paulo e sobrinho-bisneto do conde Francesco. Como membro do clã e ocupante de um importante cargo municipal, Andrea tem uma visão privilegiada do significado do significado do negócio. "O imóvel acompanhou a evolução da cidade", afirma ele. "Quando São Paulo caracterizava-se por suas chaminés, a mansão viveu seus dias de glória. À medida que a vocação da cidade migrava para o setor de serviços, o terreno passou a abrigar um estacionamento e agora terá uma torre de escritórios fincada sobre ele." A própria avenida Paulista, onde se situa o terreno, é testemunha das profundas mudanças no perfil de São Paulo. Nos primórdios de sua criação, abrigou mansões dos barões do café. Nas primeiras décadas do século 20, estes cederam espaço para as residências também monumentais dos magnatas da indústria. "Atualmente, ela é sede dos conglomerados financeiros", afirma Andrea, com uma ponta de ironia.
O projeto do palacete começou a tomar forma em 1890, quando o conde Francesco mudou-se para São Paulo. Nascido na pequena Castellabate, no sul da Itália, ele desembarcou no Brasil em 1881 e imediatamente tornou-se um tropeiro na região de Sorocaba, interior de São Paulo. Vendia banha de porco e, para aumentar seu período de validade, resolveu condicioná-la em latas fabricadas em uma oficina de sua propriedade.
Era o embrião de uma corporação de proporções colossais. Em seu momento máximo, as Indústrias Reunidas F. Matarazzo possuíam 365 fábricas - brincava-se que era uma para cada dia do ano - nos mais variados setores, de alimentos a produtos de limpeza, de cerâmicas e azulejos a papel e tecidos, além de siderúrgicas, usinas hidrelétricas e até um terminal privativo no Porto de Santos. O conde detestava ficar na mão de agiotas e fornecedores. Por isso, tinha até uma empresa de litografia, que produzia os rótulos dos produtos, uma marcenaria para fornecer caixotes e uma oficina para reparar as máquinas das unidades fabris.
Francesco precisava de uma residência proporcional a magnitude de seus negócios. Depois de adquirir o terreno na avenida Paulista, ergueu um casarão de 4,4 mil metros quadrados com 16 salas, 19 quartos, (afinal, eram 13 filhos), além de adegas e instalações para funcionários. As paredes tinham60 centímetros de espessura e o pé-direito atingia 4,5 metros de altura. Um brasão da família de 150 quilos, esculpido em mármore Carrara, decorava o pórtico de entrada. Logo, o local se tornou um ponto de visitação. "O conde havia se tornado uma celebridade", afirma Ronaldo Costa Couto, ex-ministro do governo de Sarney e autor da mais alentada biografia do conde Francesco. "Os imigrantes desembarcavam no Brasil e projetavam seu futuro em sua trajetória. "Era o italiano mais rico do mundo", diz Couto. Em 1937, seu enterro atraiu uma multidão calculada em 100 mil pessoas, numa época em que a população da cidade era de um milhão de habitantes.
O conde tinha partido, mas o casarão já adquiria uma identidade própria. Francisco Matarazzo Junior, conhecido conde Chiquinho, manteve o glamour do local, mas estampou sua marca pessoal. "Ele fez uma reforma profunda no imóvel", diz Couto. "Só os alicerces permaneceram." Mais do que nunca a inspiração fascista prevaleceu no palacete. Conde Chiquinho, claramente um admirador de Benito Mussolini, contratou o arquiteto italiano Marcello Piacentini para o trabalho. De quebra, o arquiteto sugeriu (e foi atacado) que se colocasse grandes "M", iguais aos utilizados pelo Duce, nos portões de todas as fábricas do grupo.
Foi no "reinado" de Chiquinho que a casa adquiriu ares de museu com quadros de artistas clássicos europeus e pintores contemporâneos brasileiros. Andrea Matarazzo guarda na memória obras de Canaletto e Rubens penduradas nas paredes da mansão. Nessa época, o local também sediou regabofes memoráveis, como o jornalista Joel Silveira descreveu no artigo " A milésima segunda noite da avenida Paulista", em 1945. Nele, Joel, conhecido por sua pena ferina e apelidado de "a víbora" por Assis Chateaubriand, seu patrão e eterno inimigo dos Matarazzo, relata a nababesca festa em torno do casamento de Filly com o milionário carioca João Lage. Outro momento histórico, lembra Andrea, foi a festa de bodas de ouro do conde Chiquinho e de dona Mariângela, em 1973. "Houve até uma apresentação do Royal Ballet, de Londres", diz Andrea.
Talvez tenha sido o último grande momento do casarão. Quatro anos depois, o conde Chiquinho morreu. Em seu testamento, nomeava a filha caçula Maria Pia, então com 32 anos de idade. A jovem assumiu um grupo ainda portentoso, mas já combalido por dívidas crescentes. O País havia mudado. O conde Francesco fora o pioneiro em quase todos os mercados em que atuava. Enfrentou pouca ou nenhuma concorrência. O Brasil dos anos 60 e 70, ao contrário, via o desembarque das grandes multinacionais com seus produtos inovadores e suas práticas modernas de gestão. As Indústrias Reunidas F. Matarazzo não estavam prontas para enfrentá-las. A agonia foi lenta e sofrida. A cada ano, pedidos de concordata e falência foram derrubando as empresas do grupo. Em 1992, elas estavam reduzidas a 29. Seu patrimônio encolhera para R$ 500 milhões e as dívidas somavam US$ 300 milhões, apenas com o Banco do Brasil, BNDES e Receita Federal. Maria Pia hoje dedica-se a administrar a massa falida de algumas das empresas. Ainda existem cerca de quatro mil ações trabalhistas pendentes contra o antigo império. Cliente das dificuldades financeiras da família, um oficial de Justiça penhorou o par de brincos que a empresária usava quando foi localizada - jóia bem mais valiosa do que os R$ 700 reclamados no processo.
Maria Pia foi a última moradora da mansão da avenida Paulista, nos anos 80. Não ocupava o casarão principal, mas umas casa de 400 metros quadrados, construída no mesmo terreno. Logo surgiram as primeiras notícias de venda da propriedade. As negociações não evoluíam sobretudo em função das recorrentes divergências familiares. Em 1988, por exemplo, o Banco de Tokyo deixou o clã tentado com uma proposta de US$ 100 milhões, mas não houve acordo. A ducha de água fria veio no ano seguinte. No quarto mês de governo, a então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, desapropriou a área para instalar ali o Museu da Casa e Cultura do Trabalhador.
Assustados com a possibilidade de perder uma área tão valiosa, os Matarazzo mandaram derrubar a mansão durante uma madrugada. Eles alegavam que a construção estava abalada e chegaram a dinamitar a parte da trás da casa. A demolição da propriedade só foi interrompida após a chegada da Polícia Militar. A disputa entre a família e a prefeitura de São Paulo durou os quatro anos de governo de Luiza Erundina. O assunto só foi enterrado quando Paulo Maluf assumiu a prefeitura em 1993 e revogou a desapropriação. Dali em diante, a estrutura da mansão número 1.230 (a numeração atual) do centro financeiro da capital paulista caiu na mais profunda decadência até que, em 1996, uma chuva levou o palacete ao chão. Nem o brasão da família cravado na construção sobrou para contar história. Apenas um pórtico da casa principal sobreviveu. "Ele deveria ser preservado pelos novos donos do terreno", diz José Penteado Vignoli, um estudioso da história dos Matarazzo e colecionador de relíquias de suas empresas. "Aquilo é o que restou da mansão e deu um passado de glórias. Seria um presente para São Paulo." Quando o casarão ainda estava de pé o escritório de arquitetura de Giancarlo Gasperini desenhou o projeto de uma torre de 50 andares que seria erguida na parte de trás do terreno, preservando inteiramente a mansão. Como em outras ocasiões, a idéia não saiu di papel. Pena. Seria uma excelente oportunidade de preservar a memória daquele que foi o maior industrial da história do capitalismo brasileiro.
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